CP I “Não pode suceder é não ser dada água quente aos jogadores para tomarem banho”

O antigo médio, de 47 anos, ainda treinador em início de carreira após uma passagem bem sucedida pelo U. Lamas, aceitou o desafio de orientar o emblema do Concelho da Sertã na época passada e assegurou a permanência através do 8º lugar na Série E do Campeonato de Portugal. Para 2021/22, o objetivo assumido era o de uma aproximação aos lugares cimeiros. Todavia, os indicadores preocupantes que já se vinham acumulando, ao que explica Ricardo Nascimento, resultantes dos comportamentos do presidente António Joaquim, tendo atingido um limite intolerável. Para além da falta de condições de trabalho, o agora ex-treinador do Vitória de Sernache, que bateu com a porta numa semana em que iria defrontar o Rio Ave, abdicou dessa montra em defesa de princípios inabaláveis. Os atos e comentários racistas e xenófobos alegadamente imputados ao responsável máximo do clube inflamaram uma revolta que se tornou impossível de conter e que redundou num divórcio assente em revelações arrepiantes.

RECORD – É no mínimo uma surpresa a sua saída do comando do Vitória de Sernache na semana em que iria defrontar o Rio Ave para a Taça de Portugal. Que motivos o levaram a tomar uma decisão tão gravosa nesta altura da temporada?
RICARDO NASCIMENTO – Nada me move contra o Vitória de Sernache. Nada me move contra este clube. Todavia, ocorreram situações de vida e de condição humana que extravasam o futebol. Para termos a noção do que era a realidade, não tínhamos bolas para treinar, nem sempre era possível termos acesso à relva mas, muito mais inadmissível para mim era o facto de o presidente, António Joaquim, ter repetidamente comentários xenófobos e racistas para com os jogadores e a equipa técnica, dado que o meu adjunto é brasileiro. Estamos no século XXI. Eu joguei na Coreia do Sul, em França, com jogadores de todas as raças e etnias. Esse e outros comentários do mesmo tipo estão completamente desajustados da realidade do futebol e da vida, sendo inaceitáveis na sociedade contemporânea. Não é possível um presidente julgar que pode dizer a um jovem jogador, de 19 anos, que por mais banhos que tomasse nunca iria ser branco, mas sempre preto…

R – Tem casos concretos que possa apontar para suportar essas acusações?
RN – Para ele, nossa equipa é composta por “só pretos”, que acusava de serem “pretos de merda” e queixando-se de que “nunca teve tantos pretos”. Posso dar o exemplo concreto do jogador Agostinho Cá, formado no Sporting e que jogou no Barcelona, internacional português e com provas dadas. Nós acreditámos no seu valor futebolístico, mas o presidente, desde o primeiro dia, começou a implicar com ele, alegando que não iria tolerar jogadores malandros e que não corriam. O que de facto aconteceu foi que o Agostinho tinha uma pequena pubalgia que foi recuperada e agora está muito bem. Os jogadores africanos que estavam à experiência eram logo expulsos da casa onde estavam hospedados, não se preocupando minimamente em saber como é que eles iriam embora e para onde. Conforme referi, tenho um treinador adjunto que, também, apenas por ser brasileiro, o presidente insistia que não tinha qualidade e, mais uma vez, tendo atos xenófobos, dizia que “estava farto de brasileiros”. Outra situação que serve, também, de exemplo dos atos deste presidente: travámos uma luta enorme para inscrever um jogador, em relação ao qual o Presidente afirmava, no sentido de criar problemas inexistentes, que se o fizéssemos o clube teria de pagar 30 mil euros em direitos de formação. Informação totalmente errada, tendo sido alertado por quem faz e bem a gestão desportiva, que nada tinha a pagar neste nível. Mesmo assim foi uma luta até ao último dia das inscrições. Eu pergunto: será por ser nigeriano? Como no início desta época o Presidente repetia que a equipa “eram só pretos” e este jogador foi dos primeiros a chegar…

R – Conseguiu encontrar alguma justificação para as atitudes que relata da parte do presidente?
RN – António Joaquim é claramente racista, xenófobo e, o que ainda é mais grave, vangloria-se em relação a situações totalmente inacreditáveis. Por exemplo, numa reunião onde estive presente com o responsável pela gestão desportiva, em que o Presidente referiu que numa época anterior teve um jogador que era traficante de droga, tendo-o apanhado em flagrante, sendo esse futebolista o único que o protegeu e defendeu.

R – Apesar de todos esses casos ao menos era garantido o devido acompanhamento médico aos jogadores?
RN – Quanto a isso marcou-me outro caso grave de falta de profissionalismo e ética que o presidente teve em relação a um jogador brasileiro que transitou da época passada, com reconhecida qualidade, uma personalidade fantástica e uma educação exemplar. Um jogador importante que até foi destaque na época passada, tendo ficado no melhor onze sub-21 da nossa série. O presidente implicou com ele porque teve a infelicidade de se lesionar no segundo jogo de um torneio pré-época. A ecografia e ressonância, não pagas pelo Presidente, bem como o relatório médico demonstraram que a recuperação seria de cerca de dois meses e meio, mas ainda foi mais rápida, dado que o jogador é muito trabalhador e dedicado. O presidente não o inscreveu, alegando que não queria jogar e não estava lesionado. Além disso, descobrimos que não tinha sequer seguro.

R – Perante esse cenário ponderou nem sequer começar a época oficial?
RN – É muito simples responder a isso. Na época passada conseguimos um feito extraordinário tendo em conta que o presidente chegava junto dos jogadores menos utilizados e dizia, se eu fosse o treinador tu é que jogavas, com o objetivo de minar o grupo, chegando a dar-lhes dinheiro para que lhe fizessem as vontades. Não sou de Cernache, mas fui o treinador do Vitória e com grande orgulho. Conseguimos manter o clube no Campeonato de Portugal em 2020/21, sem termos condições mínimas de trabalho. Esta época, foram-nos prometidas condições totalmente diferentes através de uma família de referência na Vila de Cernache. Essa família decidiu fazer uma parceria com a estrutura que permitiu dar início ao ano zero deste projeto, no ano passado. Eles decidiram reforçar o apoio financeiro, dando equipamentos necessários ao clube e constituíndo uma equipa médica, por exemplo. Esta parceria tinha como base o compromisso de que o presidente nunca iria interferir com a gestão desportiva e que seria criada uma estrutura a pensar na próxima época, em que este seria um ano de transição. António Joaquim teria apenas uma função institucional e todos em conjunto, pelo Vitória de Sernache e pela Vila, iríamos criar todos um projeto vencedor. Perante essas garantias, parecendo pessoas de bem e educadas, algo a que não estava habituado lidando com o presidente, recebemos indicação do plafond que seria reforçado para o plantel, que mesmo que ainda não fosse o orçamento ideal para claramente assumirmos a candidatura à subida de divisão, é um valor que nos permitia já ir buscar alguns jogadores com mais valor e experiência. Sendo que nem sempre é fácil, porque requer um trabalho de construção e consolidação, uma vez que muitos jogadores recusam-se a jogar no Vitória de Sernache: uns realmente não querem sair do litoral para o interior do país, mas outros já conhecem os problemas criados pelo presidente e não querem de todo ser jogadores do clube. Com toda esta envolvência, iniciamos a construção do plantel, num espaço de tempo muito curto (começamos a falar com jogadores apenas na semana de início da pré-época). Trouxemos jogadores importantes para o clube: uns mais jovens e outros mais rodados. Tínhamos mais quatro bons jogadores e com muita experiencia, que se iriam juntar ao plantel, tendo passado de 1ª e 2ª Liga.

R – Sendo assim o que se passou para a situação ter regredido ao ponto que conduziu à sua saturação?
RN – Numa sexta-feira informei que esse quatro jogadores estavam disponíveis para assinar mas o presidente recusou e afirmou que, a partir daquele dia, quem passaria a mandar no clube seria ele como sempre. A família Ramos estava lá para o apoiar e que seria ele a decidir que jogadores ficariam e quais iriam sair, sendo que a maioria seria para ir embora. Do nada, e de um dia para o outro, começou a destruir todo o trabalho realizado na pré-época. Nesse mesmo dia, foi solicitada uma reunião com uma das pessoas da família Ramos e ele não apareceu. Eu, em conjunto com o responsável desportivo a quem foi prometida autonomia total, tínhamos decidido abandonar o clube no imediato. No entanto, após uma conversa telefónica com o sr. José Ramos, que nos solicitou um pouco de calma, afirmando que estava de férias, mas assim que chegasse tudo seria normalizado e revolvido, conforme tinha sido definido inicialmente, fez-nos continuar para não deixarmos estes jogadores em condições difíceis, assumindo o nosso compromisso de responsabilidade. Gostaria de sublinhar que a família Ramos, desde o inicio, pareceram-me pessoas extremamente corretas e educadas. Têm, inclusivamente, um projeto para a próxima época que não abrange o atual presidente António Joaquim, tendo-nos pedido para continuar neste ano de transição. O ano passado, não conhecia esta família e o presidente referia sempre que eram pessoas perigosas e intratáveis, com uma fortuna ganha de forma não honesta, mas roubada (toda a Vila conhece a benesse que tiveram).

R – Sentiu que o seu trabalho estava a ser boicotado?
RN – Sim, com certeza. Mas há uma perspetiva que vai além do futebol que é a condição humana. Os jogadores que estão aqui foram convencidos por mim indo a Lisboa, ao Porto, ao Algarve, e foi assim que constituí o melhor grupo de trabalho que alguma vez tive como treinador. Só que não nos deixam trabalhar, criam-nos dificuldades diárias e tornava-se impossível planificar fosse o que fosse. Na época passada conseguimos valorizar jogadores e colocámos alguns futebolistas no Portimonense, Vilafranquense e U. Leiria. Também nessa altura a minha vontade foi abandonar mas o sentido de responsabilidade fez-me continuar. O que não pode suceder é não ser dada água quente aos jogadores para tomarem banho, não lhes dar o pequeno-almoço, deixá-los sem dinheiro e com fome e sem o apoio de um fisioterapeuta.

R – Foi pela preocupação em relação aos jogadores que ainda aguentou mais algumas semanas no comando técnico?
RN – Cheguei a pedir publicamente que nos dessem mais três ou quatro jogadores, os tais jogadores que era suposto terem vindo, para podermos atacar a subida de divisão mas, sobretudo, pedi internamente que deixassem o grupo de trabalho em paz e me permitissem ser treinador e cumprir a minha missão. Algo simples e objetivo. Mas sobretudo, sendo muito difícil recrutar jogadores para viverem em Cernache e integrarem o clube, que houvesse respeito pelos futebolistas. Aguentei ao máximo tudo o que se passou em defesa dos jogadores.

R – Tornou-se impossível dar alento ao grupo face ao que se passava?
RN – Acredito que o futebol é melhor do que isso. Como amo este jogo, como sinto este jogo, acredito em algo muito melhor mas neste momento é inevitável a saída. Não tenho mais força para ajudar seja quem for. Eu ouvi, ninguém me contou, frases como ‘estou farto dos pretos’, ‘estou cheio de brasileiros’, quando o racismo não faz sentido no futebol. São frases que magoam, ferem, abalam o grupo. E se calhar, também por causa disso a bola bate no poste e vai para fora em vez de entrar. É impossível ter sucesso no futebol quando a vida e a condição humana não são respeitadas.

Vítor Pinto (Record)

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